Sobre Águias, Galinhas e a Real Necessidade de Independência

aguia

A águia recorda a estrela fixa Altair, da constelação Aquila. Uma inspiração para o texto que se segue.

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Uma reflexão enquanto a Lua transita por Aquário e aplica uma quadratura a Saturno, tendo Urano, o regente moderno de Aquário, transitando por Áries, neste 27/03/2014.

No Brasil somos herdeiros de uma tradição que nos ata ao patrimonialismo/patriarcalismo, à dependência com relação à aprovação de terceiros e ao encaixe de nossas expectativas e sonhos aos padrões restritivos de modelos já desgastados. Esses padrões e modelos mantêm (sim, uso o português de antes da reforma, sou um paradoxo) as situações retidas no século XX, no início dele, com toda a burro-cracia que lhe cabe e que a despeito dos avanços tecnológicos, continuamos a reproduzir. Entretanto, o empacamento não se dá apenas no quesito “papelada” e no “ir de um local a outro para resolver algo muito simples”: ele está entranhado em nossas moléculas culturais. Em outras palavras, agimos com o freio de mão puxado em situações que requerem simplicidade, ações diretas, um ouvir e agir, mais do que cumprir protocolos que não se aplicam a toda e qualquer circunstância. Cada caso é um caso. Protocolos e padrões obviamente não foram criados para atrapalhar, pelo contrário, são formas de facilitar um procedimento e de dar segurança em caso de engano ou de má fé. 

Ocorre que assim como tudo nas realidades que experimentamos, aquilo que motivou os protocolos facilitadores e protetores deixa de existir ou se modifica gradualmente. Com o tempo, o óbvio: os padrões de procedimentos e as formas de pensar vão caducando. Aqui no Brasil a caduquice do “depender” e do pensar padronizado parece ganhar certa longevidade e, muito me atemorizo, imortalidade. Coisas aparentemente simples, como perceber as diferenças entre profissionais liberais e assalariados ou servidores públicos, por exemplo, não ocorrem à maioria das pessoas quando estamos diante de determinados problemas. Ser chamado constantemente para servir de testemunha é um caso assim: se alguém é autônomo, não tem como “justificar o dia perdido” para um superior hierárquico. Ele perde esse dia invariavelmente, pode perder um cliente, não há retorno, não há suporte, ele é seu próprio suporte. Coisa que quem atua em meios corporativos às vezes (muitas vezes) custa a entender. Idem ao servidor público. Ser assalariado é muito bom, ser servidor público também. É o sonho da maioria dos brasileiros, ter uma estabilidade, algo em que se possa confiar, saber quanto irá receber no mês que vem, todos os meses, planejar o futuro a longo prazo, fazer longas prestações para automóveis e propriedades imóveis. É ótimo ter plano de saúde pago pela empresa ou com o valor partilhado com ela, é ótimo ter férias e Décimo Terceiro salário, bônus etc. 

Não há como criticar alguém por desejar esse conforto. Ele pode produzir pessoas com alta capacidade produtiva e criativa, dada a tranquilidade, em teoria, que tal situação pode proporcionar. O problema nunca foi esse. O problema está na consideração disso como única forma possível, a única existente, está na dependência exclusiva desse modelo. Ele não precisa desaparecer, é importante que exista e forneça, sobretudo no caso do servidor público, uma alternativa à competição violenta que existe nos mercados. Por tantas vezes serviços que podem ser oferecidos com qualidade e rigor técnico são “afrouxados” na medida do “pague-me que dou um jeito para você”. Isso dá margem a uma cultura plutocrata, desigual, selvagem e arrogante, à cultura da celebridade que pode mais por ser conhecida e carismática, à do favor em potencial a ser usufruído a partir dela e de quem tem altos cargos. Então, obviamente, dadas as imperfeições humanas, pessoas cheias de ética podem errar, se exaltar, cometer injustiças e coisas do tipo, assim como pessoas sem qualquer ética e voltadas inteiramente para o próprio umbigo o farão com muito mais freqüência. 

Os serviços públicos, no entanto, parecem tornar-se uma fábrica de acomodações para muitos, não todos, claro, mas um motivo todo especial para reproduzir o “sabe com quem você está falando?”, das tradições “coroné” e “beija-mão” da cultura brasileira. Se alguém detém o poder ou autoridade para liberar uma verba para um projeto novo, se é aquele que nem autoridade tem, mas pode atrasar um procedimento porque não simpatiza com o outro ou porque não concorda política ou religiosamente com ele, dificilmente o projeto será levado a cabo. O bem comum não é levado em conta. “Ou você pensa, crê, age como eu ou vou tê-lo como um miserável que ameaça meu mundinho cor-de-rosa com tons de outra cor. Eu não quero ver outra realidade, eu não quero pensar que há algo lá fora com que outras pessoas se sintam bem que não seja aquilo que me impuseram desde criança e a que me adaptei. Mudar pra quê? Prefiro depender de quem tem mais força, prefiro tomar meu chopinho, comer meu churrasco no fim de semana, reclamar da vida, dos políticos, sonhar com a vida das celebridades, mas não fazer nada para mudar a minha ou as circunstâncias que provocam dificuldades para todos. Comer, beber, dormir e não pagar, se possível com alguém me dizendo o que devo ou não devo fazer pra não perder tempo pensando”.  

É certo que há quem não tem qualquer alternativa senão suportar o “manda quem pode e obedece quem tem juízo”, isto é, se você nasceu em uma comunidade carente de todos os serviços urbanos, se vive em meio a uma sociedade violenta, em que a sobrevivência se mede pela capacidade de aceitar dificuldades extremas, tomar decisões individuais pode ser mortal. Viver em locais cujas circunstâncias históricas se construíram pela opressão de poderosos, pelo descaso e preconceito exige muito jogo de cintura, maleabilidade, conformismo. Entretanto, uma vez conseguidas algumas condições mínimas de sobrevivência, mesmo engraxando sapatos, vendendo coisas em semáforos, suportando transportes insuportavelmente lotados, há que se pensar em melhorar. E, pensemos: fazer tais coisas sem depender de alguém que dê tudo na mão já é de grande nobreza e capacidade de ação. É agir sozinho, se necessário, já é sair do círculo vicioso que se impôs socialmente antes mesmo de aquele indivíduo nascer. É alguma coisa, por certo. Talvez, no entanto, só precise de uma outra estrutura. Por que não desenvolver uma atividade em rede, com outros que também necessitam a fazer o mesmo? Claro que não é fácil e na maioria das vezes falta instrução suficiente. É, o problema é gigantesco… Mas ainda é possível, devagar, organizar mesmo esse tipo de trabalho e melhorar as condições em que ele é desempenhado. Só falta mesmo o componente fundamental: educação, como sempre. Mas também faltam outros dois componentes: solidariedade dos demais e empenho pessoal. Um componente dá suporte ao outro. Numa comunidade carente pode haver isso em graus que muitos não imaginam. Mas faltam recursos educacionais. Taí uma idéia para desenvolver. Isso já existe. Só não é em grande número.

Ter leveza e agilidade para tomar decisões e criar realidades desvinculadas dos padrões é mais ou menos difícil em qualquer lugar, mas no Brasil isso é quase um crime. O é, no entanto, apenas até o momento em que se ganha muito dinheiro com sua “loucura”. Nesse caso, até uma enorme bunda despida dizendo ser “poeta”, “filósofa”, cheia de propostas políticas sem consistência passa a ser o hit do momento, a moda ou modelo a seguir. Se percebermos acuradamente, veremos que até mesmo a bundolatria acéfala bigbrotheriana faz parte desse acordo de dependência. O sonho é chegar ao topo sem cumprir etapas, é ser bem visto, ainda que por fazer idiotices em rede nacional ou internacional (salvam-se aqui os humoristas, que cumprem um papel fundamental nas críticas sociais). Chegar ao topo movido a propulsão bundal é nada mais que reproduzir o padrão dos favores concedidos por “beija-mãos”, neste caso, os daqueles que detêm o poder midiático que mais exponha a bunda e outros atributos distantes do cérebro. Bunda é bom, antes que me crucifiquem. Para namorar, bunda é fundamental, para qualquer preferência sexual. Acontece que se tudo for apenas isso, complica. 

É nesse ponto que as ações individuais, algumas até mesmo individualistas, mas não em cultivo ao individualismo, que é perigoso por gerar desigualdades, acabam tendo muito valor diante de tantas acomodações e protocolos/hábitos culturais. Há fases em que simplesmente não há com quem se contar, não será possível fazer os demais entenderem o que você deseja construir, nem evitar a interferência deles com os padrões repetitivos de zona de conforto, sejam os padrões familiares, sejam os da cultura da sociedade como um todo. Se você não é um “dependente”, não importa se é servidor público, se é assalariado em corporações ou autônomo propriamente dito. É melhor caminhar pelas próprias pernas, assumir o risco sozinho, manter a ética rigorosa, preparar-se para modificar seus pontos de vista rápida e freqüentemente (inclusive fazendo o que pretendo fazer depois deste texto, mudando a gramática), não esperar que os outros o compreendam e ter um plano B para o caso de as interferências dos padrões culturais serem grandes demais e seu projeto ser considerado ridículo ainda que seja ótimo para todos de fato. 

Independentemente de motivações políticas, religiosas etc., e com claras demonstrações de que não se fere a dignidade humana (termo controverso para um animal indigno tantas vezes) ou vá contra a lei, aí a coisa vale a pena. Não se exalte quando sugerirem a você que aja segundo suas normas e padrões, quando isso seria impossível (aplicar seu décimo terceiro sem ganhar um, tirar dias de licença por ficar doente, pedir uma ajuda ou aumento ao chefe sem ter emprego etc.). Se seu projeto não cria problemas para terceiros (exceto para quem prejudica a todos, aí que se dane, faça mesmo), não é ilegal, não enche o saco de quem está quieto, não tenta converter as pessoas na marra, não destrói o bem comum, então não perca tempo, dê passos adiante. Pode ser que não dê em nada, mas ao menos o processo pode ser divertido e se não for, frustrado por não ter tentado você não ficará. 

Nem sempre é possível desfazer/desconstruir hábitos tão enraizados. Mesmo quem tem pensamentos vanguardistas os cultivam. Somos vítimas de nós mesmos, de nossa necessidade de segurança, e acabamos por manter um ou outro padrão, não raro nos submetendo e atemorizando quando alguém pergunta se não vamos arrumar um emprego, fazer um concurso público e assim por diante. Saiba que nem sempre se passa nos concursos, nem sempre se consegue emprego, que as dificuldades para consegui-lo aumentam com a idade, com os campos em expansão e retração num país e também com suas vocações. Fazer algo com infelicidade pode até lhe dar segurança material, mas será por tempo limitado, dada a probabilidade de você surtar e abandonar tudo, ficar doente por somatizações, ser alguém amargo, cheio de desgosto com a vida, um porre. Se não dá para ingressar na empresa que deseja, ocupar o cargo que sonhou, tornar-se o servidor naquele posto que tanto desejava, vá aos poucos fazendo isso por si próprio, até onde lhe restar forças no dia a dia. Não dependa.

Faça o que for possível. Tenha paciência, pratique um esporte para “gastar” a raiva e frustração, mas não pare de tentar. Ainda que não consiga ver seu projeto realizado em sua vida, ele servirá de motivação até quando tudo o mais parecer sem sentido, quando você questionar suas crenças e convicções. E ainda tem-se a chance de outros continuarem seu trabalho postumamente. Sempre vale a pena.

27/03/2014 – Rio de Janeiro

Carlos Hollanda

2 comentários em “Sobre Águias, Galinhas e a Real Necessidade de Independência

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